sábado, 11 de julho de 2009

antologia poética - (1976 a 1985)

antologia poética - (1976 a 1985)






deus barbudo

um deus barbudo
carrancudo
todo senhor de si
lá do seu latifúndio largo
cheio de pigarros
tossindo grosso
me disse:
- vai beré
ser besta na vida

dos meus óculos míopes
miúdo
cá de baixo
entre os homens
descobri
que deus
apesar de tantos
estava
redondamente enganado

e eu desculpo deus
por isso

ausência de poesia

imparciais
as palavras
desafiam o poeta

indiferente
o poeta
espia as palavras

entre um e outro
nada se revela

e o tempo ponteia
no espaço em branco

um canto mudo

meus irmãos

desconhecidos
os meus irmãos são
tprtps
iguais em tudo

desfalecidos
os meus irmãos são
turvos
iguais em terra

desvalidos
os meus irmãos são
tardos
iguais no tempo

desvanecidos
os meus irmãos são
todos
iguais em tese

elegia

um solo morno e displicente
(mis do que antes devia)
espreguiça no horizonte
sua pálida vontade

uma tristeza profunda
de neblina resfriada
dói no tempo (e como)
feito faca afiada

estendida a montanha
mal sustenta o seu gesto
debruçada em terra fria
cheirando a coisa velada

e por detrás a vida
muito mal iluminada
simula um lerdo brilho
quando (in dentro) só morre

um homem vestido de branco

que seu passo livre
passeando a casa
abra longos sulcos
revolvendo a terra

que seu canto limpo
plante onde cava
semente maior
com gosto de ser

que seu gesto branco
apronte pra sempre
dentro em nosso peito
deminsão de vida

que vossa colheita
seja toda nossa
dividindo frutos
repartindo amor

palavra qu'eu espreito

a palavra qu'eu espreito
tece na boca um calado
me olha casmurra e lacrada
aprontando seu canto surdo
se vestindo de mudez

a palavra qu'eu espreito
me engana a toda hora
com seus dois gumes de faca
me espiando de fora

a palavra qu'eu espreito
é seca nunca transborda
só me ferindo por dentro
me convidando pra fora

a palavra qu'eu espreito
não se vexa nem com tapas
e se atarraca à garganta
com seu silêncio e pirraça

houve um tempo

onde o tempo não habita
com ponteiro demarcado
bem pra lá do outro lado
esquerdo do coração
houve uma vez um menino

onde o espaço não se fita
com quintal esverdeado
lá pelas bandas da brenha
do peito ensimesmado
houve uma vez uma casa

onde o tempo não se fita
e o espaço não habita
houve uma vez um menino
houve uma vez uma casa
e essa saudade que finca

liberdade

se o penhor dessa LIBERDADE
conseguimos
inda que tardia

entre o sangue nosso
derramado
trucidado vai raiando o DIA

canto de libertação

que o terno não seja
o limite do seu corpo
e nem que haja gravata
sufocando o seu pescoço

que a viseira não seja
a dimensão dos seus olhos
e nem que haja olheiras
escavacando a sua cara

que a mordaça não seja
rolho pra seu sufoco
e nem que haja palavras
entrelaçando o seu mofo

que as mãos não sejam
a gula do seu possuir
e nem que haja nos dedos
suas contas a fluir

que os sapatos não sejam
o seu programado caminho
e nem que haja nos passos
rastros traindo seus pés

que os braços não sejam
suas porradas no vento
e nem que haja nos gestos
seu vício de bater ponto

e que você não seja
papel fedendo a arquivo
e nem que haja na vida
o seu destino de rato

canto de fé

nenhum fuzil
reprime o meu canto

nenhuma mordaça
cala a minha voz

nenhum carrasco
me apronta medo

nenhuma viseira
veda os meus olhos

nenhum dinheiro
me compra a verdade

nenhuma farsa
me dobra a certeza

de que um sol mais largo
está pór brotar

a respeito de um determinado tempo

o tempo escoado
não é um quarto apagado
de luz tão carente
com gotas de vela

o tempo escoado
não se conta nos dedos
e nem se tranca em baú
o que se fez de memória

o tempo escoado
não são águas perdidas
que cumpriram seu destino
de moinho rodado

o tempo escoado
não são rastros tecidos
deixados de banda
numa estrada qualquer

o tempo escoado
não é um canto traído
atarracado à garganta
ruminando nudez

fogo sob cinzas

e se de repente
nos olhos embotados
um brilho se fizesse
na cara todo estampado

e se de repente
no passo extraviado
um destino se traçasse
inverso ao programado

e se de repente
no braço injustiçado
o punho alevantasse
seu gesto de desforra

e se de repente
na boca trucidada
a voz entoasse
o canto sempre esperado

e se de repente
do povo viesse à tona
o indigesto engolido
após estes tantos anos

e se de repente

surdina lilás

já fui moça de família
hoje farsa de bandido
e de coração partido
dou meu corpo pra quem quer
já sonhei hoje me cala
sou retalho de mulher
sou a puta dos tostões
a mais fácil mulher
égua estreita pasto largo
nas camas dos rendevouz
e todinha me amofino
na surdina do abajour

trajetória traída

eu sou o dono da fala
que por enquanto se cala
espreitando a sua vez

eu sou a terra cansada
pelos meus braços trepada
parindo frutos

eu sou o posseiro da praça
sobrevivendo à desgraça
do seu poder me engolindo

eu sou essa mão alargada
digital em pátria amada
construtor dessa nação

eu sou na força do braço
o timão de toda raça
eu sou o povo na história

um soneto bastardo

tanta vergonha em mim
me vem da origem que sou
certificado em nascimento
e de certidão parido

sou o bastardo da raça
filho da fome e do medo
mamando no esgoto da história

sou o comparsa da trama
o da boca sempre calada
a cadela do meu patrão

sempre abanando o rabo
pras porradas que um dia
me fizeram brasileiro

nosso tempo

nosso tempo
é o de dar nó
em goteira
matar cachorro
a grito
pernilongo
a beliscão

estamos num mato
sem cachorro
perdidos
que nem cego
em tiroteio

o amor
é um chute no saco

ofício de cachorro - profissão poeta

fazer poesia
é andar de quatro
na vida
farejando o resto das palavras

é dar mijadas
no poste do tempo

é engatar o rabo
na cadela da cachorra

é dar latidos de homem
neste mundo cão

na ordem do dia

perdi a armadura
a vocação pra herói
e o cavalo qu'eu nunca tive
me deixou a pé

catapultas me ferem
perante o dia
à noite cantochões
me esfarrapeiam a sorte

não trago de quixote
a ilusão diária
nem panchovilo
porções de açoite

estou (só) neste país
exposto à bigorna
oficialmente na ordem do dia

aleijadinho

transfugado de deus
o homem aqui na terra
peca por ser humano

a insana dor doída
na carne que perece
profundamente cava
na pedra endurecida
os dedos do céu

e ao relento
como um cão abandonado
um cinzel esquartejado
misturando deus e diabo
fere o tempo

em tempo de adeus

a vida não pára
e o tempo se esgota
numa exatidão infinita

o que se passa
no meu coração
não sei
a mim me basta
a ignorância enxuta
de eu estar sozinho
tracando rumos

passos plurais
sou inteiro
em cada gesto
em cada fala

e me entrego em luto
(pra você inteiro)
perante o havido

recado

maria
este país
num tá nada legal
vamos pedir a conta
e sair deste boteco

há sempre

há sempre um pouco de sangue
pra gente poder olhar
em cada dobra de esquina
em cada resto de lar

há sempre um pouco de sangue
pra gente poder tomar
em cada corpo debruço
em cada herói-calabar

há sempre um pouco de sangue
pra gente poder gritar
em cada língua torcida
castrada no seu falar

hé sempre sangue de sobra
pra gente poder lutar
nessa sangueira danada
chamada de nosso país

me perco na geografia dos fuzis

baionetas soturnas
calam vozes
limitam vidas

aparentemente
não há dor
num país de out-doors

enquanto isso
o povo come calado
o pão que o diabo
amassou com o rabo

meu silêncio

meu silêncio
cheira a sangue

não vou reter o gesto
limitar a fala

há uma vala vazia
espreitando corpo

e o silêncio me dói
feito fuzil
num corpo amigo

na ausência da palavra

o poema por (se) fazer
e que não tem sentido
é um resto cansado da noite
circulando intenso na vida

o poema por (se) fazer
e que não foi feito
é um sentimento inexato
no ato im-próprio de ser

o poema por (se) fazer
e que não foi possuído
é um papel todo em branco
de palavras ausentes

jogando limpo

(eu comigo)
a consciência exata
do meu limite:

a palavra nunca dita
a vida nunca doada
e uma vontade incrível
de fazer de conta

facalha

faca fere feito folha fina
fere feito faca fina folha
fina faca folha feito fere
folha fina fere faca feito
feito folha fina fere faca

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