sexta-feira, 8 de maio de 2009

dimensão lírico e histórica

dimensão lírico & histórica (poesia quase memória) - 1971-1986













biografia I

durmo pouco
fumo muito
bebo mais ainda
e sonho de propósito
só pra incomodar

no ano que vai longe
antigo de 52
nasci
quando fevereiro
se vestia 16

com meu pai aprendi
que o encantamento das coisas
se faz com as mãos

com meu pai aprendi
que a poesia da vida
tem um gosto de bandolin

com minha mãe aprendi
a paciência profunda
o suspiro breve
a entrega sem resposta
e o amor sempre

seguindo a linha do trem
minha cidade enfeitou-se de casas
para ser mais adiante
minha bom jesus

o tempo (burro lerdo)
levou minha infância
num cargueiro de bananas
enquanto eu jogava bola

sacramento é o rio
que banhou minha infância

papagaio é o azul
que me ensinou a liberdade

sob o signo
de brinquedos e brincadeiras
vivi

aos 7 anos
manuel bandeira
invadiu meu quarto

aos 7 anos
o amor
cutucou meu coração

(esse amor me acordava
de madrugada
pra fazer versos
- vizinha que era a minha saudade)

quando eu tinha 12 anos
um rádio SEMP
de três faixas
vomitou nos meus ouvidos
o golpe de 64

desde então
deixei de andar
na garupa da bicicleta
do meu cunhado-soldado

sobre os trilhos da LEOPOLDINA
deixei minha cidade
no ano de 67
rumo a belo horizonte

no coração
trouxe terra
na mala
roupas novas
que sempre me incomodaram

(até hoje não consegui vestí-las)

belo horizonte continua sendo
até hoje
para mim
um mistério

aonde fui amarrar minha égua
eu não sei

mas deste cabresto
se alargaram lindos:
thiago e camila

biografia II

durmo pouco
fumo muito
bebo ainda mais
e sonho de propósito
só pra incomodar

minha poesia
é um menino antigo
sentado na cancela do tempo
afiando o seu bodoque
tecendo uma pedrada

minha poesia
é onde o tempo
não marca espera
nem ponto de chegada

minha poesia
é uma mulher qu'eu nunca tive
esperando sem pressa
um dia ser amada

minha poesia
é a miséria do povo
cantando na rua
a sua fome

minha poesia
não traz gula
nem palavra espreitada

minha poesia
é a vida acontecendo
e o meu caminhar com ela

dimensão lírica

me perco no ranço dos poetas idos
meu quarto é uma mistura secular
e eu sou o lacaio de uma geração sem números

é noite
bandeira tossse da estante
e com voz rouca
anuncia:

- vou embora pra pasárgada!

- alva é, vai liero!

e manuel foi mesmo
mas me deixou
aqui
lacaio
com o peso da sua lira

cantiga de amor

senhor minha senhor
que dor eu sinto em meu peito
triste assim e tão sem jeito
desprezado e apartado
sozinho sem seu amor

..................... esteja onde eu for
..................... essa dor anda comigo

senhor minha senhor
essa dor dentro da alma
já engoliu minha calma
desprezado e apartado
sozinho sem seu amor

..................... e esteja onde eu for
..................... essa dor anda comigo

senhor minha senhor
essa dor desatinada
é ferida desdobrada
desprezado e apartado
sozinho sem seu amor

..................... e esteja onde eu for
..................... essa dor anda comigo

cantiga de amigo

oh rio que corre manso
sem ter pressa de chegar
se meu amor avistar
fale com ele por mim

..................... dia a ele que muito amo
..................... e por ele estou assim

o rio que corre indo
pra desaguar no mar
se meu amor encontrar
fale com ele por mim

..................... diga a ele que amo muito
..................... e por ele estou assim

oh rio que corre lindo
pra todo se encantar
se com meu amor conversar
fale com ele por mim

..................... diga a ele que muito amo
..................... e por ele estou no fim

oração

povo nosso
que está na terra
santificado seja
o vosso ombro
e que venha a vós
o vosso reino
e que seja feita
a vossa vontade
assim na terra
aqui na terra

o pão vosso
de cada tomai-o hoje
e não vos deixeis
cair em enganações
e livrai-vos
de todos os tiranos
também

medievalismo

deus aliou-se aos senhores
feudal fez o meu canto
bardo do desencanto
pelo amor pisoteado

- o que lamentas poeta
de alma tão pura

a igreja invertendo o rumo
atrelou-se à cristandade
e o meu canto sem maldade
coitado- perdeu-se em rimas

- o que lamentas poeta
de alma tão pura

vassalo da ladainhas
da carne me apartaram
no refrão me amarraram
me estreitando o caminho

- o que lamentas poeta
de alma tão pura

fui amigo fui amante
pelas cruzadas briguei
repassaram minha terra
sem amores já pastei

- o que lamentas poeta
de alma tão pura

já me fizeram de bruxo
me inquiriram sem lei
trancaram minha garganta
na fogueira me queimei

- o que lamentas poeta
de alma ...

essa terra é toda plana
sempre me afirmaram
centro deste universo
pela bíblia me enganaram

- o que lamentas poeta

a terra só não me basta
vejo mais além um ponto
mas se toco um dedo n'água
-nesta terra habita monstro

- o que lamentas ...

se o dia vai e vem
e a lua sempre aparece
é nesse giro da terra
que o sol todinho se tece

- o que ...

feito um raio que ilumina
que clareia toda a prece
desta fé tão obscura
que em tudo me enfrequece

essa vontade essa gula
de velejar pelo mar
"nunca d'antes navegado"
pelo prazer de remar

e espalhando o meu canto
nele vou me atirar
que o braço é meu timão
lanço velas pelo mar

e de peito alargado
sou marujo sou mais forte
já não temo mais a morte
navegar se faz preciso

quando os portugueses
aportaram (in)vestidos
aqui nu brasil
se disfarçaram de deus

e deus
que não tinha nada
a haver com a estória
tirou o rabo da reta
sartô fora

e deixou os galegos
metidos à besta
serem papados
(feito sardinha)
pelos índios

esse tempo na cabeça
esse deus me atormentando
e se vivo a vida inteira
do céu vou me apartando

esse corpo provisório
da carne me reclamando
esse céu tão permanente
e o diabo me atentando

se vivo a terra perco o céu
como juntar azul e terreno
fico só sem ter medida
que a carne é doce veneno

nada na vida me importa
e tudo tem seu valor
que a vida é amarga porta
doce vaidade de flor

se cristo meu salvador
de mão atadas me pune
eu de mãos soltas só peço
que o pecado é meu lume

prazer perdão punição
já não sei o que fazer
se vou pro céu perco a terra
sem a terra o que tecer

breve
e provisório
(enquanto cheiro
enquanto cor)
sou flor

eterno
e constante
(enquanto terra
enquanto dor)
sou tempo

cheiros
me dilaceram
ponteiros
me trucidam

neste breviário
(diário constante)
nessa missa
(cinza das horas)

de corpo presente

aleijadinho
pro elias

transfugado de deus
o homem aqui na terra
peca por ser humano

a insana dor doída
na carne que perece
profundamente cava
na pedra endurecida
os dedos do céu

e ao relento
como um cão abandonado
um cinzel esquartejado
misturando deus e diabo
fere o tempo

deus parou no que fez
céu ...... terra ....... mar
noite .........e .......... dia

deus está no que fez

o homem comeu a maçã
e gerou a máquina

o homem muda muda muda
mas a muda fica

o homem fez com que deuz fizesse
e deus ficou

deus está no que fez
deus está no que não fez

deus está terrivelmente incrustado em tudo

barroco

o barroco
é a bissetriz da indecisão

é deus e o diabo
comendo
(na mesma mesa)
o prato servido pelo humano

é a pedra sabão
enganando o tempo

é um cinzel doído
aleijadinho
cravando na vida
um gosto de morte

um deus barbudo

um deus barbudo
carrancudo
todo senhor de si
lá do seu latifúndio largo
cheio de pigarros
tossindo grosso
me disse:
- vai beré
ser besta na vida

dos meus óculos míopes
miúdo
cá de baixo
entre os homens
descobri
que deus
apesar de tantos
estava
redondamente enganado

e eu desculpo deus
por isso

reverso

no reverso do meu verso
a palavra nunca dita
pulsa insatisfeita
tecendo seu desespero

no reverso do meu verso
a palavra nunca dita
lança seu grito mudo
no planeta dos calados

no reverso do meu verso
a palavra nunca dita
é pior que um grito mudo
é uma boca trucidada

ofício de cachorro - profissão poeta

fazer poesia
é andar de quatro pela vida
farejando o resto das palavras

é dar mijadas
no poste do tempo

é engatar o rabo
na cadela da cachorra

é dar latidos de momem
neste país de cão

armadura

perdi a armadura
e a vocação pra herói
e o cavalo qu'eu nunca tive
me deixou a pé

catapultas me ferem
perante o dia
à noite cantochões
me esfarrapeiam a sorte

não trago de quixote
a ilusão diária
nem panchovilo
porções de açoite
estou (só) neste país
exposto à bigorna
oficialmente na ordem do dia

a vida não pára

a vida não pára
e o tempo se esgota
numa exatidão infinda

o que se passa
no meu coração não sei
a mim me basta
a ignorância enxuta
de eu estar sozinho
traçando rumos

passos plurais sou inteiro
em cada gesto
em cada fala

e me entrego
(pra você em luto)
perante o havido

que não seja

que o terno não seja
o limite do seu corpo
e nem que haja gravata
sufocando o seu pescoço

que a viseira não seja
a dimensão dos seus olhos
e nem que haja olheiras
escavando sua cara

que a mordaça não seja
rolha pra seu sufoco
e nem que haja palavras
entrelaçando o seu mofo

que os sapatos não sejam
o seu programado caminho
e nem que haja nos passos
rastros traindo seus pés

que as mãos não sejam
a gula do seu possuir
e nem que haja nos dedos
suas contas a fluir

que os braços não sejam
suas porradas no vento
e nem que haja nos gestos
seu vício de bater ponto

e que você não seja
papel fedendo a arquivo
e nem que haja na vida
o seus destino de rato

ouro preto

ouro preto mesmo
é de noite
ao relento

é este relicário
de saudade eterna

é a permanência
das coisas já existidas

um anjo tingiu o céu de memória

de pai pra filho
pro elias

o amor
é feito o bandolim
do meu pai

em bom jesus
na caso do
mario-da rumana
todas as noites
(infalivelmente)
entre os amigos
ele tocava sempre

um dia
(não sei por quê)
meu pai perdeu o gosto

e deixou o bandolim
mudo
(de propósito)
numa canastra antiga
pros ratos roerem

- fizeram-se dois buracos

durmo pouco
fumo muito
bebo mais ainda
e sonho de propósito
só pra incomodar

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