sábado, 13 de junho de 2009

antologia poética - 1988 (primeira parte)


antologia poética - 1988
(primeira parte)






certas lerdas lembranças



como quem um dia espia
fotos antigas guardadas
envelhecidas pelo tempo
o seu traço de mulher
no desenho do passado
é vulto quase perdido
e a saudade de nós dois
pelo tempo corroída
já nem mais se vê no quadro
mas certas lerdas lembranças
persistem pelo datado



estandarte puído


esse amor não tem sentido
não regula bem da bola
entra ano sonha o tempo
ele ainda me amola
feito uma dor de dentro
que a gente não controla



o que faço já nem sei
isso tudo me apavora
latejando no meu peito
esse amor só me demora
já virou samba enredo
na avenida dessa estória



tizaura


era uma vez três tias
todas três delimitadas:
uma se chamava izabel
a outra se chamava maria



era uma vez três tias
(uma de cá) duas de lado:
uma morava tão longe
a outra quase não ria



era uma vez três tias
todas três com os seus modos:
uma eu quase não via
co'a outra eu nada falava



era uma vez três tias
todas três com rumo traçado:
uma morreu no seu canto
a outra partiu no calado


mas a tia que ficou
pra sempre no meu lembrado
tá hoje no azul fritando
na frigideira do céu
uns certos bolinhos pra deus


águas passadas



se um dia por descaso
a gente se encontrar
no acaso desse encontro
eu quero te revelar



que o que houve entre nós
nunca mais nos atará
pois um nó quando desfeito
marcas deixa de sobrar



e eu não quero nunca mais
atrelar meu peito ao teu
pois a corda desse amor
já nos deu tudo que deu


às vezes



às vezes
eu paro e penso
eu vivo
sempre a pensar
que o amor
é água fluindo
feito rio
buscando o mar



às vezes
eu paro e penso
eu vivo
sempre a pensar
que o curso
desse rio
barco pode naufragar


às vezes
eu paro e penso
eu vivo
sempre a pensar
que por mais
que haja risco
eu só quero
navegar


moda primavera-verão
(releitura de um poema de rita speschit)



(de dentro das vitrines
etiquetas famosas
ordenam a minha escolha
entre as quatro estações)


mas meu coração
de poesia vestido
pouco se importa
com os shoppings de então



haicai arquimediano
"se me derem um ponto de apoio,
suspenderei o mundo" - arquimedes


me dê uma mesa
um copo e uma cerveja
qu'eu renovo o mundo



castelo de areias


no passado destruído
o castelo foi de areias
esvoaçadas no tempo
de um vento perdido


indeciso no futuro
um castelo de idéias
no tempo esvoaçando
inventa de construir



e o que foi sempre será
naquilo que eu partilho
areias que fizeram castelos
idéias traçando vazio





solidão



hoje eu como calado
no calado dessa noite
um prato de solidão
temperado com açoite


hoje amargo eu tomo
nessa amarga certeza
um copo de solidão
misturado com cerveja


hoje eu trago profundo
no vazio desse maço
um trago de solidão
perante aquilo que traço




momento de adeus


desatrelado do cais o barco
de vento em polpa apronta
e o porto por detrás
partido pontilha solidão


entre o cais e o barco
mais o mar se estende mais
e o azul de suas águas
lentamente vão temperando


o exato momento da despedida

você não vale um verso meu



você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito um anzol que novazio fisga
peixe algum no cardume do deixado


você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito uma bala naquilo que se atira
acertando nunca no alvo mirado


você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito um lenço solto na partida
abanando sempre para o nada



você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito passo naquilo que não trilha
tropeçando o dedão em pasto errado


você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito um brilho tapando o que não brilha
penumbra azulando em túnel errado


anatomia da procura



(o qu'eu antes retinha
no sonho só circulado)
adquire forma viva
naquilo que tenho encontrado



(o qu'eu antes retinha
na viseira delimitado)
se alarga além da vista
naquilo que tenho enxergado


(o qu'eu antes retinha
nos ouvidos tão selados)
atenta mais que devia
naquilo que tenho escutado



(o qu'eu antes retinha
no nariz cheiro lacrado)
fareja em tudo tanto
naquilo que tenho cheirado


(o qu'eu antes retinha
na garganta sufocado)
ensaia um canto lindo
naquilo que tenho cantado



(o qu'eu antes retinha
no meu peito trucidado)
apronta assim de repente
naquilo que tenho enfrentado


(o qu'eu antes retinha
nos braços em nó atado)
inventa um festo novo
naquilo que tenhop brigado



( o que antes eu retinha
nas pernas debilitadas)
alicerça os meus passos
naquilo que tenho andado


(o qu'eu antes retinha
nos passos tão tropeçados)
trilha traça nos caminhos
por onde nunca eu havia estado


tempo fazia que teu corpo eu não via



tempo fazia
que teu corpo
eu não via
e vendo assim
nesse agora
de repente
supera muito
o que antes
tinha em mente
supera em tudo
o que antes
vislumbrava


o teu corpo
mais que tudo
é um rosado
que aflora
do teu peito
em ardor
feito rosa
saliente
em galhardias
pelo dia
espalhando
seu frescor

consciência


se existir for isso
eu insisto no contrário



história





meus olhos são
uma máquina fotográfica
que o meu coração não
consegue revelar


onde não importa



é tanta
a vontade de viver



é tanto
o desejo de encontrar



é tanta
essa procura tanta



que um dia eu vou chegar


bonita


cê chega tão bonita
nem carece de fita
nesse seu cabelo
desliza tão de manso
feito um remanso
me engolindo inteiro


e por ser desse jeito
é nisso qu'eu aceito
oh mulher tão bela
e enquanto não finda
esse amor tão lindo
eu te quero assim




por onde anda o vento



careço:
de um vento tanto
pra soprar de leve
no meu coração
nesse limpar sempre
feito uma vassoura
desliza no chão
varrendo os entulhos
sem fazer barulho
do que (só) restou
dessa vassalagem
que por engrenagem
traça o amor


tragédia cotidiana

................. "quando se destrói a razão de uma existência
.................. humana, quando uma causa final e única deixa
.................. de existir, nasce o trágico"
....................................................................... emil staiger


era uma vez um homem
sentado como de sempre
na mesma mesa de sempre
na mesma hora de sempre
do sempre mesmo boteco


era uma vez um homem
que nunca nada escutava
que nunca nada falava
que nunca pra nada ligou


era uma vez um homem
constante com a mesma cerveja
constante com sua certeza



era uma vez um homem
que de nada esperar se deixou


era uma vez um homem


estrutura da diferença



(cá por dentro sou deserto
onde flor nenhuma nasce)
por fora sou um jardim
florindo nesse disfarce



(cá por dentro ando surdo
como voz não me falasse)
por fora sou todo ouvido
fingindo que escutasse



(cá por dentro sinto nada
como amor não me tocasse)
por fora meu coração
inventa como se amasse


o que antes eu retinha


o que antes eu retinha
seco no meu entalado
hoje é água perdida
derramada pelos olhos



o que antes eu nutria
preso no meu calado
hoje é palavra inútil
perante o que nunca falo


o que antes eu continha
miúdo no meu abraço
hoje não encontra espaço
pra agarrar o perdido


pra sempre


esse amor mais me conquista
sua ausência mais me enlaça
já não sei se isso é vício
ou se mesmo isso é trapaça
do meu próprio coração
naquilo que se disfarça
de cobrir com a peneira
o deixado pela traça
e por mais que eu não queira
nunca em nada ele me larga
parece um copo sem fundo
só pedindo mais cachaça


o homem







haicai


no dia em que ela
arriou meu coração
caí do cavalo


pra sempre


: eu quero
morder teu pecado
espraiar-me no largo
do teu corpo mulher


eu : quero
penetrar no teu ventre
plantar a semente
feito um lavrador


eu quero :
no teu colo vingar
e de verdade ficar
como nunca estarei


eu quero
no fruto que brotar
na estória deixar
para sempre nós dois :


porto seguro


no porto do seu corpo
eu quero me atracar
alvejar vela de novo
pra só ser no navegar
essa procura infinita
de a gente se encontrar
num horizonte perdido
de qualquer mesa de bar


redondilha do amor


coração é um canteiro
adubado de amor
semente que nele for
plantada só dá botão


(______________
_______________
_______________
_______________)


: vai sempre ser assim
quando morre uma flor
no canteiro dessa dor
rosa não ( ) mais não


entre


entre
a intenção e a distância
existe o gesto
perverso modo
de se ter
o que nem foi
se abrandada a mão
escapa a delicadeza
se podada a planta
só se tem na mão
provisória flor


submissão atirada de um indeciso


já fui sonhador
(trobei um dia)
aceitei em versos parvos
minha condição de servidor
para com a bela que nunca
que nunca me via
submisso e atrelado
sempre ao meu senhor


cansado de trovar
inventei um dia
pra meu contento
um outro investimento
e me atirei
como um barco se atira
pelos mares desconhecidos
de um outro ardor


nessa busca insana
me vi perdido
indeciso entre
o mar e a minha senhor
e pra meu desespero
me vi repartido entre
a dimensão do mar
e a imensidão do amor


o tempo perdoa não


o tempo no seu contento
aos homens perdoa não:
gira feito um corrupio
com seu tecido macio
mordendo no coração


o tempo no seu contento
aos homens perdoa não:
com seu ponteiro de faca
vai deixando a sua marca
cravada na geração


o tempo no seu contento
aos homens perdoa não:
nessa arena numerada
circula toda uma estrada
que nos enterra no chão


o tempo no seu contento
aos homens perdoa não


variações em torno de um tema barroco


se em me perguntando
na resposta mais me perco
entre resposta e pergunta
mais se torna denso o cerco
feito um cego perdido
enclausurado num beco
batendo bengala muda
no silêncio do contexto
espaço de todo nulo
tecido vazio que teço
como uma aranha perdida
inútil no seu arremesso
de tecer teia sem fio
como contas de um terço
que nunca chega ao fim
nessa busca sem conserto


antropofagia da sobrevivência


eu por mim
deus por ti


às vezes (nem sempre)


às vezes (nem sempre)
quando olho nos teus olhos
eu vejo as marcas do tempo
te escondendo a criança
que dorme nos olhos teus
(só) sonhando com você


às vezes (nem sempre)
quando espio nos teus olhos
eu sinto um outro invento
do tempo no seu contento
te revestindo de chuva
com esse cheiro de vento


às vezes (nem sempre)


gradação


obs.: este poema foi estruturado com base na
"gradação do infinitivo". a única flexão é a do
verbo ser = foi (pretérito perfeito do indicativo)


destramelar
o porão do tempo


escancarar
a janela do passado


varrer
o mofo da memória


espanar
o pó da lembrança


abrir
o baú da saudade


futricar
nas tralhas da infância


e encontrar
(no que foi do homem)
este eterno menino


haicai do amor (duas leituras)


esse trem atre-
(no meu canto - lado) é
um quisto feito


trem esse atr-
é (-lado do meu canto)
feito um visgo


eu (só)


eu (só)
- de soberbo -
tanto de mim
trago agora
esse de perto
atento ao gesto
de ser senhor


só ladainhas
de remoer
na condição
tão serviçal
ao meu senhor
- de vassalo -
só (eu)


poeminha barroco

esse teu brando de anjo
me atenta mais do que faca
tua presença esvazia
o que tua ausência me farta


teus olhos são um inferno
azul no que me desata
tua boca é um céu
vermelho que desacata


com você eu posso nada
sem você eu faço tudo
você é a minha certeza
naquilo que só me iludo


por mais qu'eu te queira


nem mesmo sei se te quero
comigo deitada na cama
mas essa vontade ferrenha
em tudo só me inflama


nem mesmo sei se o seu corpo
anseio por nele tocar
mas essa vontade antiga
em outra não encontra seu par


nem mesmo sei se o teu beijo
minha boca vai saciar
mas esse desejo louco
que os meus lábios molhar


por mais qu'eu te queira
por mais que tenhas pra dar
todo amor é um mistério:
barco perdido no mar


paciência


eu tenho a paciência
dos homens
que não se matam
e que ensaiam
na espoleta
um estampido
sem cão


e enquanto o dedo pensa
e enquanto o tempo passa
vou adiando no tiro
meu barulho de fumaça


em tempo de adeus


eu me despeço
de você
como uma mão
(esquerda de tempo)
abana no vazio
um lenço


o trem da sua história passa
eu fico


em busca de mim


em que espelho escondi
a máscara do tempo
se em meu rosto
só marcas existem


em que memória deixei
meu lerdo esquecimento
se no meu peito antigo
só carrego lembranças


em que espaço lancei
minha mão procurando
se em meu braço atrevido
só gestos se fazem


em que caminho ficou
meus passos perdidos
se em minha sina
só existe estrada


em que ponto infinito
se perdeu minha vista
se dos meus olhos aflitos
essa vontade de encontro


nunca me farta

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