antologia poética - 1988
(primeira parte)

certas lerdas lembranças
como quem um dia espia
fotos antigas guardadas
envelhecidas pelo tempo
o seu traço de mulher
no desenho do passado
é vulto quase perdido
e a saudade de nós dois
pelo tempo corroída
já nem mais se vê no quadro
mas certas lerdas lembranças
persistem pelo datado
estandarte puído
esse amor não tem sentido
não regula bem da bola
entra ano sonha o tempo
ele ainda me amola
feito uma dor de dentro
que a gente não controla
o que faço já nem sei
isso tudo me apavora
latejando no meu peito
esse amor só me demora
já virou samba enredo
na avenida dessa estória
tizaura
era uma vez três tias
todas três delimitadas:
uma se chamava izabel
a outra se chamava maria
era uma vez três tias
(uma de cá) duas de lado:
uma morava tão longe
a outra quase não ria
era uma vez três tias
todas três com os seus modos:
uma eu quase não via
co'a outra eu nada falava
era uma vez três tias
todas três com rumo traçado:
uma morreu no seu canto
a outra partiu no calado
mas a tia que ficou
pra sempre no meu lembrado
tá hoje no azul fritando
na frigideira do céu
uns certos bolinhos pra deus
águas passadas
se um dia por descaso
a gente se encontrar
no acaso desse encontro
eu quero te revelar
que o que houve entre nós
nunca mais nos atará
pois um nó quando desfeito
marcas deixa de sobrar
e eu não quero nunca mais
atrelar meu peito ao teu
pois a corda desse amor
já nos deu tudo que deu
às vezes
às vezes
eu paro e penso
eu vivo
sempre a pensar
que o amor
é água fluindo
feito rio
buscando o mar
às vezes
eu paro e penso
eu vivo
sempre a pensar
que o curso
desse rio
barco pode naufragar
às vezes
eu paro e penso
eu vivo
sempre a pensar
que por mais
que haja risco
eu só quero
navegar
moda primavera-verão
(releitura de um poema de rita speschit)
(de dentro das vitrines
etiquetas famosas
ordenam a minha escolha
entre as quatro estações)
mas meu coração
de poesia vestido
pouco se importa
com os shoppings de então
haicai arquimediano
"se me derem um ponto de apoio,
suspenderei o mundo" - arquimedes
me dê uma mesa
um copo e uma cerveja
qu'eu renovo o mundo
castelo de areias
no passado destruído
o castelo foi de areias
esvoaçadas no tempo
de um vento perdido
indeciso no futuro
um castelo de idéias
no tempo esvoaçando
inventa de construir
e o que foi sempre será
naquilo que eu partilho
areias que fizeram castelos
idéias traçando vazio

solidão
hoje eu como calado
no calado dessa noite
um prato de solidão
temperado com açoite
hoje amargo eu tomo
nessa amarga certeza
um copo de solidão
misturado com cerveja
hoje eu trago profundo
no vazio desse maço
um trago de solidão
perante aquilo que traço
momento de adeus
desatrelado do cais o barco
de vento em polpa apronta
e o porto por detrás
partido pontilha solidão
entre o cais e o barco
mais o mar se estende mais
e o azul de suas águas
lentamente vão temperando
o exato momento da despedida
você não vale um verso meu
você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito um anzol que novazio fisga
peixe algum no cardume do deixado
você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito uma bala naquilo que se atira
acertando nunca no alvo mirado
você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito um lenço solto na partida
abanando sempre para o nada
você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito passo naquilo que não trilha
tropeçando o dedão em pasto errado
você não vale um verso meu
mas eu te cantarei por toda vida
feito um brilho tapando o que não brilha
penumbra azulando em túnel errado
anatomia da procura
(o qu'eu antes retinha
no sonho só circulado)
adquire forma viva
naquilo que tenho encontrado
(o qu'eu antes retinha
na viseira delimitado)
se alarga além da vista
naquilo que tenho enxergado
(o qu'eu antes retinha
nos ouvidos tão selados)
atenta mais que devia
naquilo que tenho escutado
(o qu'eu antes retinha
no nariz cheiro lacrado)
fareja em tudo tanto
naquilo que tenho cheirado
(o qu'eu antes retinha
na garganta sufocado)
ensaia um canto lindo
naquilo que tenho cantado
(o qu'eu antes retinha
no meu peito trucidado)
apronta assim de repente
naquilo que tenho enfrentado
(o qu'eu antes retinha
nos braços em nó atado)
inventa um festo novo
naquilo que tenhop brigado
( o que antes eu retinha
nas pernas debilitadas)
alicerça os meus passos
naquilo que tenho andado
(o qu'eu antes retinha
nos passos tão tropeçados)
trilha traça nos caminhos
por onde nunca eu havia estado
tempo fazia que teu corpo eu não via
tempo fazia
que teu corpo
eu não via
e vendo assim
nesse agora
de repente
supera muito
o que antes
tinha em mente
supera em tudo
o que antes
vislumbrava
o teu corpo
mais que tudo
é um rosado
que aflora
do teu peito
em ardor
feito rosa
saliente
em galhardias
pelo dia
espalhando
seu frescor
consciência
se existir for isso
eu insisto no contrário
história
meus olhos são
uma máquina fotográfica
que o meu coração não
consegue revelar
onde não importa
é tanta
a vontade de viver
é tanto
o desejo de encontrar
é tanta
essa procura tanta
que um dia eu vou chegar
bonita
cê chega tão bonita
nem carece de fita
nesse seu cabelo
desliza tão de manso
feito um remanso
me engolindo inteiro
e por ser desse jeito
é nisso qu'eu aceito
oh mulher tão bela
e enquanto não finda
esse amor tão lindo
eu te quero assim
por onde anda o vento
careço:
de um vento tanto
pra soprar de leve
no meu coração
nesse limpar sempre
feito uma vassoura
desliza no chão
varrendo os entulhos
sem fazer barulho
do que (só) restou
dessa vassalagem
que por engrenagem
traça o amor
tragédia cotidiana
................. "quando se destrói a razão de uma existência
.................. humana, quando uma causa final e única deixa
.................. de existir, nasce o trágico"
....................................................................... emil staiger
era uma vez um homem
sentado como de sempre
na mesma mesa de sempre
na mesma hora de sempre
do sempre mesmo boteco
era uma vez um homem
que nunca nada escutava
que nunca nada falava
que nunca pra nada ligou
era uma vez um homem
constante com a mesma cerveja
constante com sua certeza
era uma vez um homem
que de nada esperar se deixou
era uma vez um homem
estrutura da diferença
(cá por dentro sou deserto
onde flor nenhuma nasce)
por fora sou um jardim
florindo nesse disfarce
(cá por dentro ando surdo
como voz não me falasse)
por fora sou todo ouvido
fingindo que escutasse
(cá por dentro sinto nada
como amor não me tocasse)
por fora meu coração
inventa como se amasse
o que antes eu retinha
o que antes eu retinha
seco no meu entalado
hoje é água perdida
derramada pelos olhos
o que antes eu nutria
preso no meu calado
hoje é palavra inútil
perante o que nunca falo
o que antes eu continha
miúdo no meu abraço
hoje não encontra espaço
pra agarrar o perdido
pra sempre
esse amor mais me conquista
sua ausência mais me enlaça
já não sei se isso é vício
ou se mesmo isso é trapaça
do meu próprio coração
naquilo que se disfarça
de cobrir com a peneira
o deixado pela traça
e por mais que eu não queira
nunca em nada ele me larga
parece um copo sem fundo
só pedindo mais cachaça
o homem

haicai
no dia em que ela
arriou meu coração
caí do cavalo
pra sempre
: eu quero
morder teu pecado
espraiar-me no largo
do teu corpo mulher
eu : quero
penetrar no teu ventre
plantar a semente
feito um lavrador
eu quero :
no teu colo vingar
e de verdade ficar
como nunca estarei
eu quero
no fruto que brotar
na estória deixar
para sempre nós dois :
porto seguro
no porto do seu corpo
eu quero me atracar
alvejar vela de novo
pra só ser no navegar
essa procura infinita
de a gente se encontrar
num horizonte perdido
de qualquer mesa de bar
redondilha do amor
coração é um canteiro
adubado de amor
semente que nele for
plantada só dá botão
(______________
_______________
_______________
_______________)
: vai sempre ser assim
quando morre uma flor
no canteiro dessa dor
rosa não ( ) mais não
entre
entre
a intenção e a distância
existe o gesto
perverso modo
de se ter
o que nem foi
se abrandada a mão
escapa a delicadeza
se podada a planta
só se tem na mão
provisória flor
submissão atirada de um indeciso
já fui sonhador
(trobei um dia)
aceitei em versos parvos
minha condição de servidor
para com a bela que nunca
que nunca me via
submisso e atrelado
sempre ao meu senhor
cansado de trovar
inventei um dia
pra meu contento
um outro investimento
e me atirei
como um barco se atira
pelos mares desconhecidos
de um outro ardor
nessa busca insana
me vi perdido
indeciso entre
o mar e a minha senhor
e pra meu desespero
me vi repartido entre
a dimensão do mar
e a imensidão do amor
o tempo perdoa não
o tempo no seu contento
aos homens perdoa não:
gira feito um corrupio
com seu tecido macio
mordendo no coração
o tempo no seu contento
aos homens perdoa não:
com seu ponteiro de faca
vai deixando a sua marca
cravada na geração
o tempo no seu contento
aos homens perdoa não:
nessa arena numerada
circula toda uma estrada
que nos enterra no chão
o tempo no seu contento
aos homens perdoa não
variações em torno de um tema barroco
se em me perguntando
na resposta mais me perco
entre resposta e pergunta
mais se torna denso o cerco
feito um cego perdido
enclausurado num beco
batendo bengala muda
no silêncio do contexto
espaço de todo nulo
tecido vazio que teço
como uma aranha perdida
inútil no seu arremesso
de tecer teia sem fio
como contas de um terço
que nunca chega ao fim
nessa busca sem conserto
antropofagia da sobrevivência
eu por mim
deus por ti
às vezes (nem sempre)
às vezes (nem sempre)
quando olho nos teus olhos
eu vejo as marcas do tempo
te escondendo a criança
que dorme nos olhos teus
(só) sonhando com você
às vezes (nem sempre)
quando espio nos teus olhos
eu sinto um outro invento
do tempo no seu contento
te revestindo de chuva
com esse cheiro de vento
às vezes (nem sempre)
gradação
obs.: este poema foi estruturado com base na
"gradação do infinitivo". a única flexão é a do
verbo ser = foi (pretérito perfeito do indicativo)
destramelar
o porão do tempo
escancarar
a janela do passado
varrer
o mofo da memória
espanar
o pó da lembrança
abrir
o baú da saudade
futricar
nas tralhas da infância
e encontrar
(no que foi do homem)
este eterno menino
haicai do amor (duas leituras)
esse trem atre-
(no meu canto - lado) é
um quisto feito
trem esse atr-
é (-lado do meu canto)
feito um visgo
eu (só)
eu (só)
- de soberbo -
tanto de mim
trago agora
esse de perto
atento ao gesto
de ser senhor
só ladainhas
de remoer
na condição
tão serviçal
ao meu senhor
- de vassalo -
só (eu)
poeminha barroco
esse teu brando de anjo
me atenta mais do que faca
tua presença esvazia
o que tua ausência me farta
teus olhos são um inferno
azul no que me desata
tua boca é um céu
vermelho que desacata
com você eu posso nada
sem você eu faço tudo
você é a minha certeza
naquilo que só me iludo
por mais qu'eu te queira
nem mesmo sei se te quero
comigo deitada na cama
mas essa vontade ferrenha
em tudo só me inflama
nem mesmo sei se o seu corpo
anseio por nele tocar
mas essa vontade antiga
em outra não encontra seu par
nem mesmo sei se o teu beijo
minha boca vai saciar
mas esse desejo louco
que os meus lábios molhar
por mais qu'eu te queira
por mais que tenhas pra dar
todo amor é um mistério:
barco perdido no mar
paciência
eu tenho a paciência
dos homens
que não se matam
e que ensaiam
na espoleta
um estampido
sem cão
e enquanto o dedo pensa
e enquanto o tempo passa
vou adiando no tiro
meu barulho de fumaça
em tempo de adeus
eu me despeço
de você
como uma mão
(esquerda de tempo)
abana no vazio
um lenço
o trem da sua história passa
eu fico
em busca de mim
em que espelho escondi
a máscara do tempo
se em meu rosto
só marcas existem
em que memória deixei
meu lerdo esquecimento
se no meu peito antigo
só carrego lembranças
em que espaço lancei
minha mão procurando
se em meu braço atrevido
só gestos se fazem
em que caminho ficou
meus passos perdidos
se em minha sina
só existe estrada
em que ponto infinito
se perdeu minha vista
se dos meus olhos aflitos
essa vontade de encontro
nunca me farta
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