sábado, 18 de julho de 2009

poemas avulsos (1989 - 1991)

poemas avulsos (1989 - 1991)


............................................ escultura em papel - beré lucas - 2009




disputa cantada

sabiá cantou bonito
canarinho não gostou
foi se fazer de rogado
seu canto desafinou

pardau deu uma vaia
canarinho reclamou
onde já se viu pardau
bicho que nunca cantou

meter o bico na conversa
quando ele canarinho
cantando fazendo festa
desafinar um pouquinho?

estorieta

....... certa feita, um homem como qualquer outro homem,
cansado de ser gente grande, se inventou de menino.
....... todos, mas todos mesmo, deram de dar gargalhadas
quando ele passava.
....... e ele, pelo tempo afora, resistia, fazendo de conta como
nem nunca ligava.
....... um dia, sem mais nem menos, seu corpo foi encontrado,
morto, abraçado a uma carretilha de soltar papagaio.
....... a partir de então, uma tristeza, miúda, tomou conta da
cidade.

aos trancos e barrancos

pôr esse calo
de cigarro
nos meus dedos
custa sarro

por esse calo
de palavras
no meu peito
pago caro

pesadelo

esse arrepio de notícia
mal dormida chegando assim
às pressas no doído coração
me acorda de sopapo a existência
feito um carro disparado
em contra-mão

e enquanto o tempo vai tecendo
o seu limite
os olhos dela nos meus olhos
são sem fim
estrada longa injetando o seu veneno
feito demônio simulando querubim

mineiridade

era uma vez um pai
cheio de UAIS
mineiras dores

solidão

larga de intenções
lá vem a solidão
arreiando o seu cavalo
de baio trote

e ninguém percebe
a roseta da espora sangrando
minhas virilhas

e ninguém escuta
o estalo do chicote marcando
meu lombo

larga de intenções
lá vai a solidão
me levando pela vida
miúdo e de barbicacho

no teu corpo

e no teu corpo
qu'eu renovo meu cansaço
me alrgo nos teus braços
me incendeio sem querer

e no teu corpo
qu'eu me faço bem mais forte
não tenho medo da morte
so de tocar em você

e no teu corpo
qu'eu me mato de prazer
e passo a viver mais
estando perto de você

e no teu corpo
qu'eu cicatrizo as feridas
que são tantas nessa vida
de a gente se perder

e no teu corpo
qu'eu me faço de menino
e você é o mais lindo
brinquedo de se querer

as pernas da bela

as tuas pernas são
um encanto
de tanta perna
e haja tanto
pra descrever
as duas belas:
que par de pernas
pernas louçãs
donzelas pernas

o que mais me deixa
intrigado
com as tuas pernas
é o contorno
dessa cor
nas duas delas:
belas pernas
perversas pernas
pernas de bela

tudo eu daria
desse mundo
qu'inda me resta
pra bem de leve
tocas de leve
nas tuas belas:
pernas malditas
que me tentam
benditas delas

ironia ambulante

o homem
na minha frente
sentdo
na sua miséria
compra outro e prata

de caça a caçador

o amor é caça rara
que atenta o caçador
se mostra some de leve
caipora é protetor

como caçar essa caça
se prenho dela estou
fera bela temporã
espoleta desse amor

na clareira dessa vida
acampado como sou
de espingarda despido

estou na mira da caça
farejando caçador
caçador é o amor

meu pai

meu pai
o tempo inteiro
através do tempo
desafiou o tempo

e o tempo
pra tormento do meu pai
se esquivava no tempo

como não havia tempo
pro meu pai me dedicar
o tempo inteiro ao tempo

meu pai com o tempo
foi definhando-se

e num contra-tempo
antes do tempo
ele acabou morrendo

agarrado
num relógio de bolso

mel : isca bela

que do amor vivências
tive e foram tantas
que não mais ouso
no seu fio m'enrolar

pois que gato escaldado
em água fria
em quente água nunca
mais quer se banhar

e entre o fio que tece
(doce armadilha)
e a água que molha
(doendo brando)

do amor por ti
(mel : isca bela)
eu prefiro ficar no canto
cá do meu só

estrutura da composição (1)

...... ( a outra )
... como diferenciar
... poesia de poema
... gema por dentro
uma estrutura que forra

um suporte que sustenta
......... preso lá fora
......... poema de poesia
......... como diferenciar
............... ( o outro )

ela

os olhos dela
já não têm mais brilho
parece um céu
que todo se turvou
é uma lembrança
de estrelas paridas
quando de luz
no espaço cintilou

o seu sorriso
se fez amarelo
e o que era belo
todo se enfeiou
que a dor de dentro
feito um cutelo
deixou o joio
decepou o amor

o corpo dela
todo bem moldado
aos poucos lento
se degenerou
que a vaidade
vento vasto indo
soprou pra sempre
nunca mais voltou

hoje mais nada
é o que resta dela
que de sobrante
nada mais ficou
só uma foto
exposta na parede
registra um tempo
em que houve amor

me dilacero

me dilacero
nessa espera quase inútil
em aguardar
o que por vir nunca virá
mas insisto
feito um empacado buroo
que as bordas
do horizonte não quer deixar

gata e égua

quero o teu corpo de gata
bem felino
me arranhando o corpo
me devorando a alma
miando nos meus ouvidos
toda depravada
quando te adentro toda
e te deixo molhada

quero o teu corpo de égua
bem potranca
me escoiceando o peito
me possuindo a calma
relinchando nos meus ouvidos
toda indomada
quando te possuo toda
e te deixo prostada

maria

maria andava triste
e tudo em torno dela
refletia sua tristeza
em pálida aquarela:

um céu ausente de azul
um sol de pardo amarelo
as flores (sem cores) coitadas
o mar mais um inferno

a noite escura sem lua
chovia lágrimas dela
as ruas um silêncio vazio
sem ninguém pelas janelas

tanta era a tristeza
que cinza em turvo dela
tudo se vestia assim:
velório ausente de vela

distante

distante
cheia de brilho
entr estrelas
a tua beleza
é feito lua
mais que todas
entre tantas

entretanto
de que vale
beleza tanta
se teu encanto
em tudo
(só) me reduz

nesse mar de angústia

nesse mar de angústia
meu barco eu sigo levando
feito um marujo atento
que continua esperando
encontrar não sei o quê
qualquer coisa de humano

nesse mar de angústia
meu barco em meio à tormenta
despido de vela e tudo
alguma coisa fomenta
por isso ele segue indo
naquilo de que se alimenta

nesse mar de angústia
meu barco em tudo já torto
capengando vai seguindo
no timão todo absorto
que o destino desse barco
tem norte por nome de porto

era uma vez um menino

era uma vez um menino
que sonhava acordado:
inventava estrelas
no dia alargado
e aprontava sol
na noite sisuda

era uma vez um menino
que sonhava acordado:
o que era feio
ele via bonito
e o que era encantado
mais lindo ele via

era uma vez um menino
que de tanto sonhar
todinho se encantou

dedicação
"um galo sozinho não tece uma manhã;
ele precisará sempre de outros galos."
.................................. joão cabral de melo neto

um galo
(carente) de voz

um galo
(sedento) de vez

ensaia sempre
os pintinhos

pra prolongar
sua vida

num canto

os quatro pontos da vida

no norte solto papagaio
onde brincam os passarinhos
e as núvens fazendo de conta
aprontam seus carneirinhos

no sul meus pés caminhando
inventam as coisas de cá
que a vida é um jogo tão lindo
e a gente não deve parar

o leste é meu braço direito
onde a mão se pôe a pintar
um sol dourado de cores
nascente que vem me acordar

do lado esquerdo do peito
é oeste o meu coração
onde nino o mesmo sol
e me transformo em canção

árvore

na terra finco meus pés
pro meu tronco se equilibrar
meus braços são galhos macios
pra passarinho brincar

o meu vestido copado
de folhas verdes que há
esvoaça no espaço esperança
se um vento vem me soprar

e quando chega setembro
feito menina esperta
me enfeito todinha de flores
que é tempo de primavera

era uma vez

era uma vez um canteiro
vazio carente de flor

era uma vez um jardineiro
que transbordava de amor

um dia (não importa quando)
o canteiro essa mão tocou

a terra toda feliz
ao trabalho se entregou

e a vida germinando
o seu jeito de espera

aprontou lá no canteiro
um tempo de primavera

pintando o sete

eu não sei se o sete
de setembro proclamado
tem a força do vento
que sopra meu papagaio

eu não sei se o sete
dessa fita verde-amarela
traz as cores mais bonitas
que as cores da primavera

o setembro é mais além
quando a gente pinta o sete
lançando no ar papagio
e de liberdade se veste

esse amor

esse amor tão dividido
que em nada já me farta
dói no peito bem profundo
que nem fenda de chibata

que nem lanho de chibata
essa dor vai me mordendo
e em tudo já me perco
naquilo que vou sofrendo

naquilo que vou tecendo
esse amor mais me sufoca
ando perdido e sem rumo
caminhando em linha torta

pouco importa esse amor
naquilo que mais me importa
que essa dor é sem limite
adverso que me estoca

pouco eu sei de amor

pouco eu sei do amor
que por ele fui pisado
que na estrada do passado
dele mais nada restou

pouco eu sei do amor
do seu jeito inusitado
é ferida que de largo
no meu peito se estreitou

pouco eu sei do amor
é como se não houvesse
amargura que se tece
me despindo de ardor

pouco eu sei do amor
essa ausência tão presente
é que nem igual parente
que no tempo se deixou

pouco eu sei do amor
é tortura incendiada
chama acesa que se apaga
é cinza que só ficou

algumas considerações em torno de uma boca

a tua boca bonita
de carmim toda enfeitada
em tudo é tão bem bonito
que às vezes me recato

pra que tanta boca bonita
no teu rosto desenhada
se entre mim e essa boca
é longa é tanta estrada

por tua boca bonita
de mulher tão alvejada
eu daria um reino
pra encurtar caminhada

eu por mim

eu por mim (naquilo que me atrelo)
sou abdicação: corpo sem mercado
sou assim: de alma lavado

eu por mim (naquilo que lido)
sou dedicação: gesto abrandado
sou assim: para o ser amado

eu por mim (naquilo que amo)
sou rendição: inteiro entregado
sou assim: esquerdo de lado

aprendizagem

a tua ausência é
um forte aprendizado
e sem alarde aguardo
o nosso dia

que o tempo da espera
fio por fio
aos poucos vai tramando
nossa chegada

pra quem deseja tanto
séculos são só segundos

soneto

às duras penas me safei do amor
por isso ando um tanto arredio
feito uma corda-bamba tecendo o fio
pra despencar de cima o amador

mas como evitar esse grave risco
se a vontade antecede a dor
que a queda é coisa tão antiga
e em se caindo se sacode o pó

mas feito um gato antes escaldado
de água fria medo ele tece
eu antecipo tudo de daninho

como que sem saber do rumo
me atiro sempre nesse poço fundo
correndo o risco de um encontrar

algumas considerações sobre um seio

o teu seio é feito para
onde sem gula sacio
a minha sede de amante
se equilibrando num fio

por ser fruta o teu seio
tem a polpa da manhã
por isso te toco sempre
com essa vontade terçã

e é no teu seio de fruta
que me entrego de-vez
como nunca havia sido
perante outra mulher

assim sendo

eu não espero do amor
nad em troca
que o amor (só por si)
vai além disso:
é pular no escuro
correr o risco
é equilibrar-se
tecendo a corda-bamba

eu não quero do amor
nada de troco
que o amor (por si sendo)
trama seu visgo:
é atar-se um ao outro
por espírito
enquanto a carne
bonito se dimensiona

algumas considerações em torno de uma bunda

a tua bunda bonita
me lembra montanha mineira
é feito coisa faceira
alargada de horizonte

a tua bunda bonita
é coisa mais que divina
e nela o que me fascina
é o seu modelado contorno

pra que tanta bunda bonita
se os meus olhos no que fita
espiam tanto de longe
essa beleza tão de perto

ensaio de vôo
(ou de como a gaiola humana escancara suas portas)

pelos teus seios rosados
mil sóis eu te daria
se esse brilho eu tivesse

por tua boca bonita
te daria um arco-íris
se essa cor eu tocasse

por tua mão me alisando
seu escrvo eu seria
se esse dom me deixasse

por tuas lindas entranhas
me inventaria de banana
se essa casca eu tivesse

despido inteiro de brilho
e dessas cores ausente
deixo o escravo de banda
que ser é além da banana

e que role como vier

caravana da esperança

lá vai a caravana da esperança
com sua tropa de cavalos bem surrados
virando à esquerda da esquina da vida
com seu trote repisado de passado

lá vai a caravana da esperança
trotando torta e de pêlo bem escasso
seguindo indo vai sumindo a caravana
feito lembrança corroída de passado

e no ponto de sumiço a caravana
feito poeira lerda lenta a se levantar
como quem já cansado dessa vida
no vazio ainda insiste em respirar

lá se foi a caravana da esperança

baú de saudades

na capanga do coração
quase nada é encontrado
pouca coisa dele restou
no embornal do passado
que com o tempo corroendo
ficou meio desgastado
esquecido em um canto
invertendo o seu contrário
e pelo buraco tecido
em forma de alargado
um só retrato restou
pelo desejo mascado
descorado de lembranças
pelo amor que havia estado

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