sexta-feira, 24 de julho de 2009

antologia poética - 1992

antologia poética - 1992











soneto
"nem o tempo há de apagar
as digitais do meu dente
ao longo do seu corpo"
........................ wander piroli


por tanto tempo nossos corpos tão unidos
que a perde dele em tudo me embaraça
é feito dia sem sol quando se embaça
é feito noite sem lua tecendo fio

o teu corpo por demais só me sacia
que no gozo eu me perco te encontrando
e quanto mais te tenho mais vou te amando
feito fêmea parindo a sua cria

mas por certo hora virá e será dia
que do teu corpo estarei dele apartado
tal que nem braço amputado por faca fria

e no meu canto sem tecer o desencontro
já não mais te cantarei como devia
mas o meu dente no teu corpo estará cravado

a conversa qu'eu nunca tive

a conversa qu'eu nunca tive
com meu pai
ainda é no tempo
um nó na garganta

contamos nos dedos todos;
as palavras ensaiadas
as horas sempre adiadas
os olhares de estravio
os agrados dissimulados

éramos cúmplices?

ave & avião

tinha uma vez um avião
viajando pelo espaço

havia uma vez uma ave
passeando pelo céu

o que tinha de aço
a outra possuía de mel

um roncava suas dores
a outra cantava no céu

joaninha

coitada da joaninha
de catacores todinha

na palma da minha mão
no seu todo tão tadinha

quem é que salpicou de cores
essa porção miudinha

foi o arco-íris pintor
ou o pintor de arco-íris

noite escura

a lua desencantada
nem quase brilhou no céu

as estrelas coitadinhas
todas careciam de luz

o céu todo tristonho
vestiu seu manto apagado

enquanto na terra luzia
muito mais do que devia

entrepiscando todinhas
as lanternas dos vaga-lumes

tablete de sonho

o céu vestido de azul
estala nas vistas bonito
é tão intenso de cor
que mais parece um grito
das roupas das lavadeiras
alvejadas de algodão

a poesia

a poesia sempre
foi meu forte

é meu artista
é o meu norte

e isso faz muito
desde eu menino:

inventando coisas
aprontando estórias

sempre fui
de pé esquerdo

mão que me devora

no mar profundo da vida

no mar profundo da vida
o amor é peixe esperto
vê a linha engole a isca
mas do anzol nem chega perto

quem se arrisca a pescador
tem que ter muito cuidado
em remar em mar bravio
enfrentar desencontrados

porque quando menos se espera
fisgado é o amor
mas uma dúvida sempre fica
quem é que é pescado

o peixe ou o pescador

cantar bonito

eu que cantava bonito
sou trinado de trizteza
e o que brilhava bonito
é opaco com certeza

a leveza do meu gesto
é só peso de intenção
e onde havia fogo
não mais hoje existe não

o qu'eu havia aberto
em tudo virou portão
cadeado reforçado

segredos de coração
porque as chaves da vida
inda não encontro não

algumas considerações em torno do amor

o amor anda em tudo
é um doido andarilho
sempre inventando coisas
no seu saco sempre brilho

é feito fogo constante
que se alastra sem parar
com mil chaves de segredos
segredos por desvendar

o amor não tece tempo
é o reverso do começo
é uma ave toda aflita
se debatendo inteiro

nem mesmo a morte pode
o amor decepar
porque do fundo da terra
ele sempre há de vingar

por enquanto

me retardo por enquanto
nessa espera
(feito ave sem vontade)
de voar

me retenho por enquanto
no meu canto
(feito pássaro que se priva)
de cantar

me adentro por enquanto
nessa busca
(feito cego sem bengala)
pra guiar

me isolo por enquanto
em mim mesmo
(feito guia perdido)
no trilhar

por amor

por amor me esfacelo
por ele me entrego inteiro
sou boi indo pro corte
berrando feito cordeiro

por amor eu me desdobro
faço hora-extra na vida
e quanto mais me calejo
mais vou gostando da lida

por amor me desentranho
das tripas faço coração
que o gesto em sendo pouco
se vale da intenção

de retê-lo entre os braços
com tamanha exatidão
que a vontade se faz tanta
que ele escapa pelas mãos

após a tempestade

após a tempestade
sempre chega a bonança
e meu peito sem vingança
se veste de um canto livre

o pasto já se esverdeia
prometendo safra boa
e o amor hoje me soa
sem rancores sem maldades

no quintal da minha vida

no quintal da minha vida
tem fruta de todo jeito
têm borboletas bonitas
resumidas num enfeite
de serem só coloridas
com asas soltas no ar

no quintal da minha vida
jaboticabas são brilho
tinindo de serem pretas
para serem as mais belas
mordidas menino guloso
trepando no horizonte
de uma saudade sem fim

no quintal da minha vida

espio de longe

espio de longe
como quem espia o tempo
tecendo sua memória
se remoendo por dentro

a estória da minha cidade
começa por um ferida
de um certo adão coelho
com a perna em chaga viva

e como promessa cedeu
um condado de terra perdido
se o senhor por milagre
curasse ele em vida

proposta

que mais eu quero da vida
se a apropria vida me dá
esse dom de prosseguir
sem nunca pensar em parar

e vou seguindo assim
do meu jeito a caminhar
sempre procurando sempre
sem saber o que encontrar

que a procura me persegue
nesse meu sempre buscar
que a busca é minha gula
sem nunca me saciar

e quando um dia a morte
estúpida vier me chamar
mala pronta passo largo
com ela vou caminhar

por um caminho novinho
que nunca ousei nem trilhar
mas meu passo vou seguindo
nessa busca de encontrar

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